Banda gaúcha leva as luzes do norte pra passear na cidade. Confira ‘Lagoinha’ + entrevista.
fotos: Marcelo Koetz e Gustavo Poester
Há mais ou menos 3 anos o gaúcho Arthur Valandro & cia nos levavam numa viajem pra ver e ouvir as luzes do norte com o projeto Soundlights, nascido durante uma estadia no Alasca e muito inspirado pela aurora boreau e pelo contato íntimo com a natureza ao seu redor. Essa experiência transbordou em forma sonora no ‘Sons Que Vêm do Sítio’ (2017 – Lezma Records), EP que abriu a primeira edição do nosso Feliz Ano Psicodélico e que me comove até hoje.
relembrar é viver e logo menos tem mais Feliz Ano Psicodélico vindo aí:
Saindo do ambiente idílico retratado no primeiro EP e voltando-se para temas mais concretos da vida em sociedade sem perder a essência lúdica, a banda apresenta agora dois novos singles: ‘Lagoinha’ / ‘Onde for, irá’ levam a psicodelia intimista da Soundlights para passear na cidade e refletir sobre o tal do “cidadão de bem”. Mixadas por Benke Ferraz (Boogarins), masterizadas por Florencia Saravia-Akamine (que foi responsável por algumas mix e masters do projeto Escuta As Minas do Spotify que mostramos aqui) e contando com colaboração de André Garbini, Bernard Simon, Gabriel Burin, Isabela Leindecker, Juliano Lacerda e Ricardo De Carli, as novas faixas marcam um amadurecimento da sonoridade e do posicionamento da banda, apontando para a gravação do primeiro disco que está previsto para 2021.
ouça Lagoinha:
Aproveitando o lançamento, conversei com a Soundlights sobre a transição na temática e sonoridade de seu trabalho, experiências da produção em modo remoto, retratos sonoros de paisagens e outras coisas, confere nosso papo aqui:
Arthur, a temática de ‘Lagoinha’ e ‘Onde for, irá’ ainda traz aquela conexão etérea apresentada no ‘Sons Que Vêm do Sítio’, mas também dá espaço para uma reflexão sobre assuntos mais “mundanos”, como o perfil do tal do cidadão de bem. Nos fale um pouco sobre essa transição neste novo trabalho.
Arthur: Oi, Joyce! É um prazer continuar contando essa história por aqui, especialmente por termos trocado muitas ideias incríveis na época do ‘Sons Que Vêm do Sítio’. Pra mim, essas duas canções novas são a sequência lógica da narrativa do sítio, sabe? No sentido de que aquele mergulho profundo pra si caracterizado pelo sítio e por toda aquela aura psicodélica era apenas uma incubação de algo maior, mais potente. Acho que faz bastante sentido contextualizar as vivências do sítio como uma descoberta adolescente da inter-relação entre tudo, seres humanos constituídos por suas histórias e inseridos na natureza como parte de um todo. Essas duas faixas novas retratam, resumidamente, um momento após esse deslumbramento em que se retorna pra cidade e se retoma o contato com as problemáticas sociais inerentes ao modo como nos organizamos como sociedade. Nesse momento, surge esse embate, por exemplo, entre “cidadão de bem” e o sítio, a natureza, reforçando as dicotomias que estamos vivendo fortemente nos últimos anos. Aí a narrativa passa a ser sobre como integrar aquelas experiências passadas como instrumento contra essas relações adoecedoras que estão estabelecidas por aí afora e nas quais inerentemente estamos envolvidos. Esses dois sons constituem a ponte pra esse novo posicionamento, que vai ficar mais explícito com os próximos lançamentos!
Ric (Ricardo De Carli): A ideia de transição foi justamente essa, e até pensar sobre qual espaço (em termos de território) que cada um destes lançamentos ocupa nos ajudou a elaborar o universo do EP Lagoinha. Queríamos sair do sítio para um ambiente mais urbano, que necessita de uma comunicação mais clara e direta, menos voltada para si. Portanto, traduzir isso pro som significou, no nosso caso, trazer a voz mais à frente, sem muitos efeitos, tornando a letra mais evidente, chamando para um diálogo. E isso implica num entendimento que fazemos parte de um coletivo, da vida coletiva, que existe uma troca que às vezes pode ser bem tóxica, que tem sido difícil mesmo, especialmente nesse ano. Então, colocar uma tensão nesse termo “cidadão de bem”, que tem uma conotação de forte viés político, pode ser bom, pode ser talvez ir ao pé da letra, e acho bem interessante. É nos incluir e incluir todo mundo no mesmo barco, por mais desconfortável que seja. Compartilhamos nossa existência aqui e é preciso lidar com isso.
A primeira parte de ‘Lagoinha’ é provavelmente o som mais pop e dançante que já ouvi da Soundlights, conta pra gente quais referências sonoras você buscou trazer pra ela.
Arthur: Que delícia ler essa pergunta! Hahahah. Vou largar essa pra produção.
Ber (Bernard Simon): Margareth Menezes e Beach Boys. Um intencionalmente e o outro nem tanto.
Ric: Apesar dessa novidade, várias referências se mantiveram as mesmas do início do projeto, como MGMT, Animal Collective, Of Montreal (é legal pensar que essas três bandas já passaram por diversas sonoridades, do mais psicodélico ao dançante). Por outro lado, começamos a ouvir mais música brasileira, tanto dos anos 70 e 80, como Secos e Molhados e Itamar Assumpção, quanto artistas da cena atual, como Mãeana, Tono, Ava Rocha, Supervão. Além disso, tenho escutado bastante Bruno Pernadas, Tortoise, Oval e Alex G.
As produções em modo remoto durante o período de isolamento estão a todo vapor e a criação do ‘Lagoinha’ não foi diferente. Gosto sempre de perguntar para as bandas quais aprendizados (bons e ruins) dessa experiência vocês levarão para a realidade pós pandemia?
Arthur: Gosto de pensar agora que a produção desses sons caracterizam muito bem a síntese do que foi a pandemia por aqui até agora… dias iluminados por uma motivação energizante e frenética seguidos de semanas nubladas que passam voando seguidas de algumas horas de insights e aspirações pro futuro seguidas de algumas horas de pânico e desnorteamento. O incrível é pensar que, em um grupo de 8 pessoas (c/ produção), realizamos fácil mais de 200 videochamadas ao longo do ano. Foi intenso e curioso demais. Deixo essa pra produção desenvolver mais também!
Ber: Muito sobre ter uma banda é estar envolto em um processo de escuta constante, onde estamos reagindo a impulsos e ao mesmo tempo influenciando o outro. Com a pandemia tivemos que entrar em outros modos, por isso em Onde For Irá criamos uma regra onde todos tinham que gravar no máximo 1 faixa instrumental sem ter escutado os outros instrumentos. A música acabou indo para lugares não previstos, o que foi bastante legal. Lagoinha foi um processo um tanto diferente, criamos muitas texturas instrumentais e gastamos incontáveis horas pra editar. Dentro de um processo criativo acho que não existe bom ou ruim, acho que existem escolhas, e essas brincadeiras que envolvem a produção acabam por delinear o processo criativo.
Ric: É bem legal poder chegar no fim do ano e ver que algumas práticas de fato foram super positivas e vieram pra ficar. Logo no início da pandemia, lá em março, estávamos colocando o pé pra fora de casa pra começar o processo de pré-produção do primeiro disco, mas logo vimos que seria inviável no momento. Então fomos criando um espaço de troca virtual diariamente, num misto de reunião de trabalho e grupo de apoio (hehe), acabamos nos aproximando bastante, a rotina dos encontros por videochamadas foi um elemento essencial pra manter a sanidade. Aliás, ter que aprender a se comunicar por meio dessa interface também foi um aprendizado – inicialmente era difícil entender quando falar, muitas falas eram entrecruzadas e cortadas, acho que foi um timing que todo mundo foi aprendendo como lidar. Só que, uma vez afinado esse processo, respeitar o tempo de fala de cada pessoa permitiu que todo mundo falasse e escutasse de forma mais horizontal. Eu realmente acho que o que vivemos esse ano tem transformado a escuta (positivamente), e espero que tenha bons desdobramentos aí depois da vacina. Outro desafio foi justamente entender esse ritmo “a todo vapor”. Novos padrões de presença virtual pareciam se atualizar a cada semana (todo mundo fazendo live o tempo inteiro), ser produtivo parecia uma obrigação – esse paradoxo doido de todo mundo estar em casa com “tempo” enquanto o mundo lá fora tá desmoronando. Aos poucos fomos entendendo nosso tempo e trabalhando com expectativas que não podiam ser muito rígidas, mas que sempre estiveram ali guiando o processo. Em termos de produção musical, Onde For, Irá teve um processo bem interessante. Já que estivemos impossibilitados de nos encontrar pra tocar e compor, pensamos em tirar proveito dessa não-presença. Então gravamos primeiro uma guia com voz e violão na qual todo mundo tocaria ouvindo essa referência – e unicamente essa referência – pra que depois empilhássemos todos os takes na expectativa de surgir com interações não intuitivas entre os instrumentos. Acabou funcionando bem, e agora temos uma nova estratégia de produção na manga
E o EP anterior ganhou um formato visual bem lisérgico que eu amo! Vocês já estão planejando algum material de vídeo para os novos singles?
Arthur: Com certeza! Não poderíamos de modo algum não fazer jus ao nome do projeto… além do som, as luzes do audiovisual vão aparecer por aí em breve hahaha. Temos engatilhado uma série de materiais visuais pros próximos meses… desde vídeos da nossa produção, sessions intimistas, etc. Em termos de videoclipes, já estamos com esse olhar mais afiado pros próximos lançamentos, mas asseguramos pelo menos um belo lyric video dessas canções! No mais, estamos buscando ter uma atenção mais direcionada aos aspectos visuais, também, das nossas apresentações ao vivo. Mal podemos esperar por essa vacina pra poder pegar a estrada Brasil acima novamente!
Ric: Planejamos sim, mas indo aos poucos. Entendemos que este lançamento ficou bem pro fim do ano, levantar todo o processo não foi tão fácil, e não queremos fazer o trabalho de qualquer jeito, só por lançar. Eu acho que o material visual que vem agora (a capa feita pelo Marcelo Koetz e Gustavo Poester) ficou muito potente, é uma imagem que sintetiza bem o espírito do que queremos abordar. De estar olhando de frente pra si, de equilibrar a existência sustentada pela natureza, de como é frágil e sutil nossa relação consigo mesmo, de como o humor de bem-estar pode ser quase imperativo. E por aí vai.
veja o Sons que Vêm do Sítio:
Pra fechar: se a gente pensar no ‘Sons Que Vêm do Sítio’ como um retrato sonoro das paisagens do Alasca, qual lugar do mundo vocês diriam que o ‘Lagoinha’ melhor retrataria?
Arthur: Lagoinha é um espaço amplo, muito belo, acolhedor e vívido. A questão aqui é que Lagoinha é um local envolto por montes de mata nativa, protegido de qualquer ação que não a de seu próprio ciclo natural. As canções marcam justamente o movimento de chegada, contemplação desse espaço, e partida. Na saída, o visitante se depara com o outro lado do monte, repleto de ignorância, negacionismo, tirania, e tudo que muito bem já sabemos. Entendo que o nosso país é assim, repleto de lagoinhas por aí afora. Aqui no Sul, temos a Lagoinha do Leste, praia de Florianópolis – SC, que inspirou o título do material! Paraíso pertencente a um dos estados mais conservadores de nosso país, ameaçado por prédios multimilionários e ideais super questionáveis.
Ric: Tô totalmente embasado por onde vivo aqui, Porto Alegre. Um espaço urbano que é bem arborizado, comparado com outras capitais. Que é grande o bastante pra ser uma metrópole mas pequena o bastante a ponto de em menos de uma hora já se pode sair do cinza (não à toa a foto da capa foi tirada numa destas zonas). Eu acho que Lagoinha traz bem isso, um ponto de vista e de escuta que tá em um lugar, mas que olha pra outro. É essa incongruência que fundamenta bastante o EP.
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