Impressões sobre o primeiro dia de festival + entrevista com Rios Voadores.
foto: Leo Hladczuk
Olha, não é aniversário do cerrado mas vou lhes dizer que ele está de parabéns: nas últimas 3 semanas Brasília e Goiânia viraram epicentro do vortex da música independente brasileira abrigando três dos principais festivais do nicho – foi Coma, Picnik e Bananada tudo em trenzinho um atrás do outro, palmas pro cerrado por favor
Por motivos de preciso trabalhar pra pagar os boletos só consegui acompanhar um dos festivais, mas pelo menos dessa vez não foi correria igual ao ano passado e deu pra viver full experience. Cheguei em Brasília na sexta-feira, véspera do PicniK, já que também fui convidada pra discotecar numa festa por lá. Mas antes, pausa no La Rubia, um café bar que tem ambiente & cardápio super descolados e preços bem justos – uma refeição sai na faixa de R$30 e tava tudo bem gostosinho. Ainda na Asa Norte, paramos pra deixar as bagagens e dar aquela revigorada no bom e velho Hostel 7, que mudou de cara e endereço e apesar de agora abrigar um café meio gourmet (recomendo os cafés gelados de lá mas são $$), ainda oferece área comum e cozinha para seus hóspedes – a geladeira do hostel e o after do rolé que os diga.
De barriguinha cheia e banhada segui para a Toranja, uma festa veterana do underground brasiliense que dessa vez aconteceu na Birosca, bar/balada localizado no Setor de Diversões Sul – parece coisa de distopia a la 1984, mas pra quem não sabe Brasília é dividida dessa forma mesmo: em setores comercial, residencial, de diversões e até de mansões. Ainda estamos procurando o setor de panificações (nunca vi uma padaria e “de onde vêm os pães de Brasília” é um pensamento que me ocorre frequentemente).
Na Toranja dividi a pistinha com o Lúcio Ribeiro do Popload e mandei aquele set indie br até onde deu, minhas músicas acabaram e o púbico estava sedento por se mexer, então acabou rolando umas sessentices, oitentices e sei lá mais oquê. O mais louco desse bar é que ele é vizinho de uma Igreja Universal e as projeções da festa vão parar no muro da igreja mesmo. Deus abençoe o setor de diversões né.
PicniK bsb <3
Sabadão chegou e com ele o primeiro dia do festival. Dessa vez o PicniK aconteceu no Memorial dos Povos Indígenas, espaço desenhado por Oscar Niemeyer que abriga parque e museu dedicado à cultura indígena brasileira. A entrada para o festival era gratuita ou com 1kg de alimento dependendo do horário, e como de costume o espaço foi tomado por feirinhas de artesanato, food trucks incluindo opções vegan, espaço kids, adoção de pets, espaço de cura dentro do museu e diversos expositores locais, de onde destaco a presença de brechós com preços super em conta (adquiri produtinhos mara no Brechó do Óculos e no Brechó Adocica), e uma banca de produtos doados para ajudar na campanha de arrecadação de fundos para o filme Me Farei Ouvir, um projeto independente para conscientização e promoção de mais mulheres na política – a boa notícia é que as meninas conseguiram atingir a meta e vai ter filme, fiquem de olho nas redes delas!
Além disso tudo ainda tem música! Como não amar esse fest. O line-up composto por KERVANSARAI, Apicultores Clandestinos, Felipe Cordeiro, Rios Voadores, Ava Rocha, TETO PRETO, Igor Torres, Zéfiro, Moon Pics, Transquarto, Sick, Isaurian, Huey e NOID dessa vez se dividiu em 2 palcos: o principal, que me deu impressão de apresentar estrutura de som melhor do que nos anos anterires, porém abrindo mão da já tradicional tenda circense (fez falta debaixo do solzão), e o Mr Truque Nóis Bus, um ônibus real que é assunto para a parte 2 desse rolé, aguardem.
Eu tinha muitas espectativas para os shows desse primeiro dia porém rata de festival que virei sabia que não adiantava fazer cronograma já que nunca consigo segui-los. Assim, decidi perambular pelo palco principal e ver o que acontecia. Que bom, pois gratas surpresas aconteceram, começando pela abdução psicodélica que é o show dos gaúchos da Apicultores Clandestinos destilando fuzz e sua homemade pinga com mel (me deixaram uma garrafa de presente quando partiram de Brasília, fofos).
Na sequência, o brega cult do Felipe Cordeiro acompanhado do papai mestre da guitarrada Manoel Cordeiro me conquistou até o final memorável, onde embalada pelo mix de cúmbia, carimbó e tecnobrega a platéia se dividiu e desembocou nos rios São Francisco e Amazonas – foi daqueles momentos bem astral lavagem da alma mesmo sabe (talvez eu tenha lavado alguém de cerveja nesse momento também, sorry).
A Rios Voadores é uma paixão de anos, vi pela primeira vez aqui em SP durante a turnê do debut album em 2016. Foi nessa ocasião que conheci a Gaivota Naves, na outra vida dela, um ser especial que admiro e me inspiro desde então. O show no PicniK marcou o fim de um hiato da banda e o lançamento do novo disco: ‘Rios Voadores na Era Sinistroyca’ traz os grogues ainda mais seguros e sem papas na língua mergulhando de forma brilhante em traumas individuais e coletivos. Apesar dos trajes dignos de uma distopia cinematográfica que reflete toda a loucura da Era Sinistroyca, o quinteto mantém a pose de bon vivants no palco, brincando de apontar o dedo na cara do desejo reprimido do dedo que aponta (hehe), e se desperucando em momentos mais intensos – aliás achei super simbólico a peruca da Gaivota cair justamente durante a biográfica e introspectiva ‘Miga Sua Loka’, como que perdendo o medo do espelho e de ver tudo de bom e ruim, foi bonito. Ali embaixo tem um papo com a banda, segue rolando.
Ava Rocha estava absoluta como sempre e dessa vez acompanhada de uma percussionista que fez toda a diferença na ambientação do show – a combinação mística de batida e voz em ‘Joana Dark’ evocou todas as bruxas ancestrais dentro de mim, coisa hipnotizante mesmo.
O show do TETO PRETO já estava dando o que falar antes mesmo de acontecer: segundo redes sociais a banda estava sendo advertida por terceiros quanto a discursos políticos e à nudez da vocalista Laura Dias – caso este que a organização do festival não teve conhecimento. Assim, Laura subiu ao palco bem moça recatada & do lar com um ornamento de tapa sexo e fitas cobrindo os seios. Já havia visto a TETO PRETO acompanhada do performer francês Loic Koutana na Virada Cultural e ficado boquiaberta com seu jogo de dança e performance que personifica todo esse rolé electro-orgânico da banda, que pega a música brasileira pela mão e diz que ela será inclusiva e vai passear pelas esquinas do techno e da EDM sim.
E rainha da subversão que é, durante a faixa ‘Bate Mais’ Laura descobre os seios e convida todas as minas, monas, travas e homens trans a fazerem o mesmo e subirem no palco. Fechamos assim o primeiro dia de festival com o palco tomado por um coro de corpos estranhos entre si mas gritando em uníssono por liberdade. Censura uma sobe 100. Foi extasiante.
Entrevista – Rios Voadores
Depois de tudo isso e de fôlego retomado, conversei com a Rios Voadores sobre a Era Sinistroyca e outras doideras, confere o papo aqui:
Nessa nova fase vocês adotaram um figurino digno de filme de ficção científica distópica. O detalhe é que a Era Sinistroyka é bem real e dentre todo o retrocesso temos visto um retorno da censura cada vez mais tangível – e que inclusive ameaçou um dos shows do Picnik no último final de semana. Como sobreviver como artista à essa nova era?
Tarso: O figurino veio de uma parceria nova e muito profícua com o ateliê de moda e costura da Lina Albuquerque, profissional incrível que subiu no bonde conosco. Esse tal ‘sobreviver enquanto artista’ é uma sina real nas nossas vidas e tende a ser maior que as circunstâncias ou preconceitos que cercam qualquer trabalhador a serviço da arte nesse país… O que acho que não esperávamos é esse retrocesso moral, essa caretice histórica disfarçada de ‘cidadão de bem’, a guerra sem fim, os seres brutalizados ou desprovidos de sensibilidade que continuam cagando regra na nossa cabeça em pleno 2019 (!)… A Era Sinistroyka é tão surreal quanto o projeto distópico do qual conscientemente ou não já fazemos parte. Está acontecendo agora e não temos ideia de onde pode nos levar. Hoje há um estado de alerta e organização constante (e necessário) em todos os envolvidos com minorias e resistência.
Por trás dos versos engenhosos e descontraídos, existe a crítica social espalhada por todo o disco. Vocês acreditam numa revolução dos grogues?
Tarso – Há essa crítica ao status quo, à hipocrisia disfarçada de segurança, à confortite tóxica das fakenews etc, mas com certo verniz irônico para que a leveza possa de alguma forma vencer (pelo menos facilitar) o peso pesado desses tempos né, senão a gente acaba se abatendo mais do que pode suportar, é informação demais. Ainda há esse mecanismo de ação embutido na canção e na inquietude do bom e velho groguenroLL. Os grogues tem coração e também fazem o que podem! Salve o rocK Humano e a contracultura! Risos, mas é sério.
Marcelo – Revolução grogue ou proliferação do amor? Prefiro acreditar que a revolução vai acontecer através do amor. O momento agora parece ser o do esclarecimento, de levantar a consciência e ficar atento. De repente o próprio movimento horroroso que se inicia vai acabar por si só, com escândalos de corrupção igualzinho aos infinitos que precederam os últimos episódios que traumatizaram a grande massa. Eu mesmo vejo é repetição!
No novo disco vemos ainda a influência do rock e psicodelia brasileira dos 60s e 70s – dá pra sentir várias ondas de Belchior, Mutantes, etc, porém não se limita e parece passear por um espectro mais completo de possibilidades sonoras. O que vocês andaram ouvindo durante a concepção dele?
Tarso – Sim, tem muito dessa galera atemporal ainda tipo Raul Seixas, Rita Lee, Secos & Molhados, Sá, Rodrix & Guarabyra, Belchior e cia. Mas tem também contemporâneos como Júpiter Maçã, Irmão Victor, Altin Gün, King Gizzard and The Lizard Wizard, Mild High Club e por aí vai. Com as ideias e timbres sempre tentando alguma confluência a gente espremeu as 10 faixas em 6 dias na Sala Fumarte e mais 1 dia na Casacajá, aqui em Brasília. Foi intenso!
Marcelo – Além das maravilhosas canções para bebê nacionais e internacionais (rs) tenho ouvido muito Sugar Candy Mountain, Jacco Gardner, Altin Gün, Murlocs e muito jazz, choro, música clássica e os rocks antigos Beatles, Mutantes, etc. Um tanto educativo para mostrar boas referências pro filhote. Ver ele cantando “hey boy” é lindo demais! E no mais tenho me interessado mais por produções que trabalham a canção com arranjos simples, priorizando bastante a letra e melodia. Ultimamente tenho detestado ouvir solos de guitarra por exemplo. Prefiro muito mais uma boa convenção de banda que um solo a la Van Halen, e por aí vai. Acho até que isso passou pro nosso disco. Eu e o Duka (Gustavo Halfeld, produtor do disco) fomos muito nessa direção nesse trabalho.
Gaivota, o disco também faz algumas referências ao seu renascimento, mas de maneira leve, sem pesar. Hoje você diria que ele representa “as pazes” com suas cicatrizes?
Gaivota – Joyce minha deusa, essa banda é uma cicatriz. As cicatrizes, no caso, são a fronteira entre o que foi e o que será. Temos que parar de espernear e aceitar que as coisas acontecem por algum motivo e tem seu tempo de aprendizagem, suas marcas…
Por isso sim, esse disco faz as pazes e se despede de uma fase importante do passado.
Pra fechar: do que a fonte da Rios Voadores tem sede?
Tarso– Sede de música, mais shows, de vida, sede de ir adiante e além!
Marcelo – De um bom natal e um próspero ano novo
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ouça Rios Voadores na Era Sinistroyca que logo eu volto com a 2ª parte desse rolezão: