A Era é agora de Gil: ação/presente
O gênio Gilberto Gil completou ontem 78 anos e pra celebrar o Lau e Eu e o Pedro Bieneman gravaram uma versão chillwave da faixa ‘Era Nova’ (1977), que veio acompanhada de um belíssimo videoclipe com cenas do filme maliano “La Vie Sur Terre” (2000) e também de uma análise da canção que é uma verdadeira aula de história, vem aqui ouvir/aprender com o Lau:
A Era é agora de Gil: ação/presente por Lauckson Melo
A canção composta para Roberto Carlos é prova da genialidade crítica, política e subjetiva de Gil. Quando nos debruçamos sobre a mensagem, percebemos a ambição de seus contornos. A letra tematiza uma suposta “era nova” evocada por um grupo idealizador que reduz este pensamento a mera teoria.
“Falam tanto numa nova era Quase esquecem do eterno é”
A primeira pergunta que fica é: o que seria a “era nova”? E quem seriam estes que “falam tanto”? Este pode ser um ponto de partida interessante para um possível aprofundamento da interpretação da letra. A faixa está no álbum Refavela (1977), obra que traz questões sociais, étnicas e históricas influenciadas pela viagem feita por Gil à Nigéria.
Do ponto de vista histórico, o último quartel do século XX foi um tempo de reestruturação do capitalismo, que depois dos seus “gloriosos anos” (1945-1975) começou a mostrar sinais de colapso. O maio de 68, as Revoluções de emancipação em África e Ásia, o movimento dos Panteras Negras e tantos outros coletivos radicais apontavam para a crise: ela estava na porta e há quem diga que ao seu lado esquerdo a ‘era nova’ de massas insurgidas tocava a campainha.
Como demonstrado com rigor teórico no livro do carioca Rodrigo Castelo (“O social-liberalismo”, de 2011) e em alguns trechos de Asad Haider (“Armadilhas da identidade”, de 2019), estas frentes revolucionárias foram minadas através de inúmeras iniciativas coesivas e coercitivas patrocinadas pela classe dominante dos países capitalistas centrais.
Diante desta visitante insatisfeita, nasceu o neo-liberalismo. É uma história longa, mas o ponto é que este fenômeno mudou radicalmente o processo de formação de identidade da classe trabalhadora, consolidado mais tarde o pós-modernismo e sua maneira de perceber o ser social, este apolítico refém de vislumbres positivistas.
É aqui onde talvez repouse a dialética da canção. Gil coloca este novo tempo em um plano universal e critica uma parcela da esquerda ocidental voltada a um pensamento idealizado de revolução, pautada em molduras classistas abstratas, cuja perspectiva em nada corresponde à materialidade dos povos oprimidos. Podemos transpor a metáfora para as atuais tendências de pensamento constituídas de puro identitarismo liberal, que em nada alteram o caráter substancial da realidade. Para além da crítica aos que ‘esquecem do eterno é’, Gil não desanima, coloca a ideia de uma “era nova” em primeiro plano e reafirma:
“só você poder me ouvir agora, já significa que dá pé”
Seria a ‘nova era’ o socialismo que derrotaria o aleijão, estúpido e hipócrita neo-liberal? A revolução socialista não chegou ao Brasil, fomos carcomidos por um processo de desintegração que tomou a radicalidade como tola, violenta e injusta. Enquanto isso, amontoados de Auschwitz se acumulam nas periferias até hoje. Sem respostas da social-democracia, o povo recrudesce e a burguesia segue incólume.
“a verdade sempre está na hora”
O recado é direto: a ‘era nova’ é agora. Precisamos construí-la em um processo pautado na materialidade que almeja a potência do tempo, este construído no agora.
“novo tempo sempre se inaugura, a cada instante que você viver”
A genialidade em todas estas possibilidades discursivas tem sua beleza edificada quando descobrimos que esta foi pensada para Roberto Carlos, um artista “das massas”, alguém que com certeza daria um alcance maior a canção.
Gil é um mestre da subjetividade, é um ótimo exemplo de como a arte pode servir a um propósito existencial e de luta, um propósito que vai além do pós-modernismo e dos labirintos identitários que gangrenam a propagação dos ideais contra a exploração do homem pelo homem.
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