Comentado por Fabio Martins do canal Tocando Lá Em Casa.
1968 foi o ano em que a vibe peace & love construída no decorrer da década de 60 passou a dar sinais de desgaste. Com um verão que trouxe mais sutiãs (figuradamente) queimados do que flores, o ano foi marcado por protestos, revoluções, assassinatos e guerra.
Musicalmente, porém, 68 foi tão produtivo quanto seu antecessor – o que ficará bem claro no passeio 1968 EM 50 DISCOS que hoje traz o Fabio Martins do canal Tocando Lá Em Casa comentando uma das obras mais relevantes e doidonas do experimentalismo sessentista:
Álbum: ‘A Saucerful of Secrets’
Artista: Pink Floyd
Gravadora: EMI Columbia
País: Inglaterra
Lançamento: 29 de Junho de 1968
por Fabio Martins
Hipnótico, obscuro e não menos psicodélico, o disco A saucerful of secrets, lançado em 1968, é o segundo da banda Pink Floyd e marca uma fase de transição: é o primeiro álbum da banda com a participação de David Gilmour, convidado a integrar o grupo já que Syd Barrett vinha apresentando um comportamento cada vez mais distante e incontrolável. A princípio, a ideia era manter os dois guitarristas, mas os recorrentes lapsos e a “ausência” de Barrett no palco, mesmo quando estava presente, preocupavam os demais integrantes em relação ao futuro da banda. Segundo relato de Nick Mason no livro Inside Out, no dia em que iam tocar em Southampton, alguém dentro do carro disse: “Temos mesmo que ir pegar Syd?” e a resposta foi: “Não, foda-se, vamos esquecer isso.” No show, Gilmour deu conta do recado cobrindo todas as partes de guitarra e de vocal. Na plateia, ninguém reclamou da ausência de Barrett e, a partir daí, eles nunca mais passaram para buscar o ex-integrante.
Barrett havia sido o principal compositor do primeiro disco, The piper at the gates of dawn (1967), e, com seu desfalque, o resto da banda teve de se esforçar e trabalhar o lado compositor. O resultado são canções experimentais de atmosfera obscura, características que permaneceram presentes também em discos posteriores.
“Let there be more light” abre o disco com um poderoso riff de baixo de Roger Waters, que lembra trilha sonora de filmes de espionagem. Em seguida entram os pratos da batera de Nick Mason e o sintetizador de Richard Wright. De repente, a música muda de andamento e cai em uma melodia hipnótica com letra ocultista. Destaque para o trecho “Was Lucy in the
sky” – será influência dos Beatles, que tinham acabado de gravar o “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” também no Abbey Road?
“Remember a day” e “See-saw” são composições de Wright com abordagem infantil, harmonias não convencionais contando com mudanças bruscas e inesperadas e sons psicodélicos característicos do primeiro disco da banda. Destaque para a voz de Wright, que predomina ao longo do disco.
“Set the controls for the heart of the sun”, concebida para ficar dentro do alcance vocal de Waters, tem riff marcante, batida hipnotizante e uma atmosfera que lembra rituais de sacrifício como os do filme do Conan (com o Schwarzenegger, claro!). Segundo Waters, a canção é baseada na poesia do final da Dinastia Tang. Na parte rítmica, Mason emula “Blue sands”, a faixa tocada pelo baterista Chico Hamilton no filme Jazz on a summer’s day. Sem dúvidas, “Set the controls” está entre as músicas mais interessantes do Pink Floyd.
“Corporal clegg” é a primeira música da banda fazendo à guerra, tema que continuou sendo explorado por Waters até The final cut (1983), disco que marca a sua saída do Pink Floyd. E, claro, ele continuou explorando esse tema em seus discos solo. A cereja de 11min57 do bolo é “A saucerful of secrets”, a música mais experimental e psicodélica do disco e que seguramente poderia ser a trilha sonora do filme O iluminado, de Kubrick. Sem seguir uma estrutura padronizada de canção, ela é dividida em quatro partes: “Something Else”, “Syncopated Pandemonium”, “Storm Signal” e “Celestial Voices”. Nas palavras de Mason: “Roger e eu a mapeamos in advance, seguindo a convenção de música clássica de três movimentos. Não fomos os únicos a fazer isso, mas também não era algo comum. Sem conhecimento de notação musical, projetamos toda a peça em um pedaço de papel, inventando nossos próprios hieróglifos.”
Em 1971, “A saucerful of secrets” foi tocada pela banda em Pompeia, na Itália, junto com “Echoes” e “One of these days” do disco Meddle (1970). A sessão deu origem ao filme Pink Floyd: Live at Pompeii, dirigido por Adrian Maben e lançado em 1972. Desde então, é difícil escutar essas músicas e não associá-las às ruínas de Pompeia e ao Vesúvio.
“Jugband blues” é a única composição de Barrett e se refere a sua saída da banda: “É imensamente atencioso de sua parte pensar em mim aqui / E eu fico muito grato por você deixar claro que não estou aqui”
A capa do disco foi a primeira parceria com a Hipgnosis, empresa de Storm Thorgerson e Aubrey Powell, e nela foram usadas sobreposições de impressões a cores. O resultado agradou, e a parceria com a empresa acabou se estendendo e dando origem a outras futuras capas que se tornaram referência e a marcas do Pink Floyd.
Em um documentário sobre o Pearl Jam, Eddie Vedder diz que o Pink Floyd é uma das poucas bandas da história que não tem uma cara, ou seja, não é possível associá-la a um único integrante. Concordo e complemento, ainda, dizendo que é impossível definir o Pink Floyd com apenas um disco. A saucerful of secrets é exemplo disso! Cada disco é um experimento de laboratório com resultados improváveis. Então, se você só conhece discos consagrados como The dark side of the moon e The wall, experimente outras viagens com A saucerful of secrets, Ummagumma (1969), Atom heart mother (1970), Meddle (1971), Obscured by clouds (1972)… mas faça isso sabendo que você nunca mais será o mesmo: a viagem é sem volta!